Hoje eu vi muitas mulheres de burka. Foi uma coisa quase que fascinante quando eu assisti pela manhã a uma verdadeira marcha de famílias islâmicas rumo ao templo, porque é um dia especial relacionado ao Ramadan. Muitas mulheres de famílias islâmicas modernas – que não são obrigadas a usar o véu – o tem na cabeça durante esse período, e do mesmo modo algumas que apenas usam o véu no resto do ano usam a burka agora.
Toda a vez que encontro uma mulher de burka, eu fico me coçando: curiosidade, medo, tristeza, esperança, dúvida; tudo passa na minha cabeça. Eu nunca tinha visto uma mulher de burka antes de mudar para Angered, não ao vivo e a cores – ou melhor, em preto e cinza – e isso somado ao fato de que eu não conheço muito da cultura do islã me causam essa intensa torrente de sentimentos.
A Suécia acolhe a muitos estrangeiros que procuram refúgio em vista de guerras civis, e por isso existe uma grande população de árabes e de países do leste europeu de maioria islâmica que se mudam para cá; tanto que Mohamed é um dos nomes mais populares na Suécia, juntamente com Andersson e Johansson. Aqui em Angered está um núcleo desse tipo de famílias, assim posso ver vez ou outra uma mulher passando quase que como um fantasma, tentando ser discreta com esse traje tão cheio de significados e preconceitos.
Fiquei um longo tempo observando duas delas no trem. Os maridos conversando, e cada uma olhando para fora pela janela. Não sei se elas não devem conversar quando estão em público, se elas tem que parecer invisíveis, se elas não podem olhar para as pessoas, e isso me deixa triste. As duas tinham crianças pequenas, provavelmente em idade semelhante [tipo 2 e 3 anos], pareciam jovens, estavam indo para o templo celebrar o mesmo rito… não seria natural que estivessem trocando figurinhas?
E nem vou adentrar em todo blá blá blá típico da repressão e pau e corda que gira em torno da cultura islâmica e outras que limitam as mulheres. Afinal, comparando com a liberdade das suecas, nós brasileiras usamos véu e/ou burka em muitos aspectos. Mas não é isso que me incomoda…
Quem já leu “Perto do Coração Selvagem” de Clarice Lispector talvez lembre que logo no início do livro a menina olha pela janela as galinhas ciscando o chão e que não sabem que vão morrer, e as minhocas que são comidas pelas galinhas que serão comidas pelas pessoas. E fica esperando alguma coisa acontecer e nada. Tudo é igual. Eu tenho essa sensação quando vejo mulheres de burka: para mim, ela são como as galinhas que não sabem que vão morrer… fazendo coisas estranhas como comer minhocas. E eu sempre fico imaginando alguma coisa fantástica, como ela tirar a burka e gritar por liberdade, ou simplesmente assistir a duas mulheres de burka agindo de forma “normal”, conversando no trem ou com uma atitude que não aquela de “eu preciso ser quase invisível”.
Será que elas são felizes? Será que pensam em fugir, mudar? Será que podem? Será que elas questionam essa vida, esse padrão?
Provavelmente, tem muito de preconceito nesse meu sentimento. Afinal, o mundo islâmico é muitas vezes exibido como um circo de agressões aos direitos da pessoa humana, onde o comum é aprender a ser terrorista na mais tenra idade e ser mulher é quase que uma praga. Será? Não somos nós brasileiros vistos como índios? Que falam espanhol?
O que me faz ter certeza de que eu sou a menina observando as galinhas? Será que elas [as mulheres de burka], não pensam o mesmo quando olham para mim?
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados.
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. “Oi, oi, oi…”, gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende?
[Perto do Coração Selvagem, CL]