Trabalhar ou não, eis a questão…

Quem escreve em um blog as três da manhã? Mães de recém nascidos e a Nara… bom, eu acredito lembrar de pelo menos uma vez ter lido algo que ela postou na madrugada. Na verdade, acredito que há gente que escreva no meio da noite, acredito até mesmo que existam aqueles que varam a noite na internet, mas para mim isso é novidade.

Meu trabalho novo é responsável por essa blogagem não convencional. Ou, talvez, aquilo que vai se tornar mais um dos meus trabalhos aqui na Suécia. Seria o 4º emprego diferente em menos de dois anos… primeiro eu não falava sueco e trabalhei como faxineira, aí aprendi um pouco e comecei com o Zé (que não “fala” exatamente, então eu não precisava de fluência); e em seguida foi a vez do Zezinho, que é autista (ele fala, mas eu não preciso um vocabulário muito grande)… Agora a coisa começou a ficar séria.

Ainda não sou assistente social. O que estou fazendo agora é definido como behandling assistans e eu sou, naturalmente, uma behandling assistent ou simplesmente a pessoa que trabalha em um abrigo e acolhe e/ou cuida de pessoas. Eu não lembro qual é o termo utilizado dentro do SUAS no Brasil para este tipo de trabalho e, na verdade, a essa hora da madrugada eu não tenho cabeça nem para lembrar disso e tão pouco vontade de “googlar” o termo. Att behandla significa cuidar/tratar e o termo behandling é utilizado para designar um tipo de tratamento – tanto dentro da área de saúde como fora dela.

A conversa que tive com a studievägledare sobre as minhas ambições acadêmicas na Suécia fez com que eu ficasse literalmente sem dormir. Ela me encorajou a procurar um trabalho como vikarie (substituta) em algum canto da enorme rede social de Göteborg a fim de conseguir alguma experiência e por meio da oportunidade aprender um pouco mais sobre o sistema de assistência social sueco (ao menos da cidade de Göteborg). Dentre as três opções disponíveis naquele momento, duas jamais atenderam ao telefone.

Já quando eu liguei para o pessoal que trabalha com os sem tetos da cidade alguém atendeu e eu agarrei a chance com ambas as mãos, o que fez a Dona Rosa (a responsável pelo abrigo) ficar bem admirada. Não que eu a tenha impressionado com o meu sueco mas o caso é que disparei a história da minha vida de uma vez só pelo telefone sem dizer o meu nome e sem dizer que eu morava em Göteborg. Apesar da gafe ela riu e marcamos uma entrevista.

Se eu disser que tinha alguma ideia da onde estava amarrando o meu burro estaria mentindo: eu sabia que era um boende (abrigo – somente nesse caso na minha tradução livre) mas não sabia ao certo para quem e para quê, qual seria o meu papel. Ela me disse já por telefone algo como “somos um grande abrigo e precisamos de gente para trabalhar a noite com as pessoas sem teto”.  E é isso… trabalho em um grande abrigo que abriga três grupos distintos de usuários: imigrantes, sem teto e semi sem teto (se é que esse termo existe). O último é constituído de um grupo de pessoas que está em transição – perdeu tudo que tinha e não sabe para onde vai. Alguns deles vão se tornar sem tetos, outros vão conseguir de volta alguma estabilidade . Só para constar: estabilidade é um termo muito estreito para ser aplicado nesse caso e eu não to muito feliz em utilizar ele aqui.

Quando a D. Rosa começou a me explicar as peculiaridades do trabalho fiquei assustada. Alguns dos usuários têm doença mental, outros fazem uso de drogas ou álcool. Eu deveria trabalhar usando um pequeno alarme próximo ao corpo, o qual eu passo disparar em caso de me sentir ameaçada. E o mais difícil: ficar acordada a noite toda (começo as 21h30min e saio as 8h da matina). Como eu não sabia o que fazer ao certo decidi experimentar e então eu alcancei a oportunidade de trabalhar por duas noites (seguidas) com o pessoal que já faz o trabalho há anos, numa espécie de introdução da qual tanto eu como eles podem decidir se foi bem sucedida ou não.

Por fim, cá estou eu experimentado passar a noite em claro para atender pessoas sem teto. O meu papel é acolher pessoas que estiveram em contato com o sistema social e por algum motivo querem (ou precisam de) uma noite tranquila em uma cama. Elas recebem um quarto (o abrigo fica em um velho hotel), comida (jantar e café da manhã), a possibilidade de tomar banho e lavar roupas, assim como acesso a novas roupas (usadas). Eu não preciso fazer nenhum espécie de abordagem individual – do tipo chegar no usuário e submetê-lo a uma entrevista; quem quer conta quem é e para onde vai e quem não quer, come e dorme. O departamento em que estou é quase que uma casa de passagem, em teoria os usuários não deveriam/poderiam voltar ou passar uma temporada por aqui mas, com base no que vi/ouvi a noite passada e hoje, muitos deles são velhos conhecidos.

A primeira impressão é que gostei do trabalho e, principalmente, dos colegas que já encontrei – ri demais e apesar do relógio voltar para trás entre as 3h e 5h da matina, no mais vai sem muito problemas afinal, eles tem muito o que dividir e eu quero muito escutar mas… não sei se tenho peito para continuar com isso. Sinceramente, meu medo foi substituído por algum sentimento entre a compaixão e a empatia, e isso é tanto bom como ruim. O problema maior está em passar a noite em claro e virar de ponta cabeça a minha vida. Se eu continuo nessa vou ficar longe de duas coisas que fazem minha vida repleta de sentido, em primeiro lugar o Joel – trocamos apenas algumas palavras tanto na segunda como na terça e amanhã… vou dormir durante o dia outra vez! – e em segundo lugar, a minha cama.

Tudo  que tenho ouvido aqui nesses dois dias me deixou entusiasmada mas também dividida; feliz e triste. De certa forma, não há muitas diferenças entre a realidade do trabalho social (que eu conheço) no Brasil com o daqui – eu vou explicar isso em outra hora, mas me refiro sobretudo as frustrações e expectativas com relação a esse trabalho e a possibilidade de tratamento de pessoas com dependência química. Por outro, parece que ser assistente social que trabalha com pessoas sem teto não é um caso fácil – sem falar que de forma nenhuma assistente social passa por uma moça boazinha que ajuda as pessoas; não na Suécia.

No fim, guardo uma certeza: a studievägledare tinha razão.

9 comentários sobre “Trabalhar ou não, eis a questão…

  1. Maria Helena,

    A sua realidade é tão distante da minha em termos de trabalho aqui na Suécia que só tenho a te admirar pela coragem de sair de casa, desbravar o mundo sueco e oferecer sua energia e força de vontade aos abrigos e pessoas que precisam de cuidados.

    O caminho que você escolheu, ou que está disponível por enquanto para você seguir aqui na Suécia, pode não ser o mais fácil. Mais lendo os seus posts tenho cada vez mais certeza de que você nasceu para ajudar as pessoas. Não é todo dia que se encontra alguém com essa coragem e garra, e isso vai, ainda que não seja tanto e quando você deseja, te trazer bons frutos. Acredite.

    Eu ajudo insituições de caridade e campanhas em prol das mulheres traduzindo seus sites e campanhas insituicionais de graça. Mas isso, aqui, no conforto da minha casa, que embora seja bem pequenina e simples, me mantém protegida e segura.

    Você, está saindo da sua casa, enfrentando noites acordadas, para ajudar quem não tem a opção de ir para casa. Admiração e respeito é o que você desperta em mim.

    Continue firme e forte, certos caminhos não se apresentam por acaso.

    Um beijo,

    Nicole

    p.s. eu conheço duas assistentes sociais aqui em Malmö. Uma delas se tornou uma grande amiga e trabalha como assistente social com crianças refugiadas há mais de 10 anos. Se você vier pro encontro em Malmö em maio e quiser conhecê-la para fazer algumas perguntas: podemos organizar um fika.

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  2. Oi pequena!
    nao é facil um trampo assim, o maximo que ja vivi numa situacao dessas (to falando do problema do horario) foi um trabalho que tive, altamente entendiante que aguentei tres meses, e eu acordava 3 da manha. Virar a noite é bem dificil, mas notei que isso so foi problema nos primeiros dias de adaptacao, depois a gente acostuma. Mas aí tbm esta o problema se adaptar a essa rotina nada saudavel.

    De qq forma, Helena, vc é uma lutadora! Tá encarando de peito aberto. É de tirar o chapéu!

    O que mais me deixa curiosa é como vc volta pra casa, um trabalho desses, acho, mexeria mt com minha cabeca, eu sou mt sensivel e tudo me pega de maneira mt forte. Ter um confronto tao grande com esse outro lado do país, nao sei como eu ficaria no fim do dia, no seu caso, no inicio do dia :-(

    Quero ha mt tempo fazer um trabalho voluntario com criancas. To esperando uma amiga pra gente comecar juntas, será num orfanato. Mas ja me doi o coracao so em pensar no que vou encarar…

    Bsj e sorte Helena, minha linda!

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  3. Caipira, vc é demais garota!!!
    Gostei de ver. Vc tem bom sueco sim! Talvez nao perfeito, mas vc se faz entender e fala bem. Minha humilde opnião.
    O trabalho é lindo, as pessoas precisam, mas é necessário um pouco de dosagem nos sentimentos né? Não pode se envolver assim.
    Assim que eu cheguei na Suécia, queria estudar enfermagem desisti por causa da loucura dos horários. Pra mim por mais legal que fosse o meu trabalho, trabalhar a noite ou fim de semana seriam tortura, daí virei professora. Não é o que amo, mas foi o que eu escolhi.

    Então agora é colocar na balanca o que é prioridade, como você vai enfrentar a nova carga horaria de trabalho e se todas essas decisões fazem sentido e irão te fazer feliz!

    Vou ficar na torcida!

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  4. Nossa eu te admiro muito, admiro na verdade pessoas que se doam dessa forma ao trabalho, digo trabalhar com pessoas é sempre desafiador e apaixonante, não é pra mim, porque eu meio destrambelhada e não tenho tacto pra lidar com gente, mas ai do mundo se não existissem pessoas dispostas a exercer esse tipo de profissão com amor.

    Boa sorte, que você e sucesso nos seus projetos

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  5. Menina, estou virando sua fã!!
    Fico encantada com a sua coragem, persistência … coisa de quem sabe o que quer e que não desiste fácil.
    Realmente entendo seu dilema, situação complicada, um horário muito puxado e não sei se as atividades são realmente as que você mais gosta de fazer. Tenho certeza de que vai saber tomar a decisão mais acertada e que vai acontecer o melhor pra você.
    Beijos

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  6. Gente, eu ando meio devagar com as respostas, mas leio cada coment assim que vocês postam viu? É só minha inércia atrapalhando…

    Nicole,
    Obrigada guria, mas acho que o trabalho social é assim mesmo. No fim não somos heroínas – ou somos porque temos estômago – mas eu não faço caridade e não estou lá apenas porque tenho empatia pela dor dos outros. Eu gosto do que faço mas se não recebesse pago por isso não me daria para esse tipo de coisa, porque elas machucam sabe? Machuca ver gente reduzida ao pó da gaita, abandonada pela Estado, esquecida pelo resto do mundo… No fim, sei lá, também não vou querer ficar fazendo aquele tipo “discurso humildade” mas não acho que aja uma diferença tão gritante só porque você fica no sofá de casa… uma guerra só pode ser vencida por meio de diversas frontes de batalha. To tentando e experimentando, vamos ver até quando eu consigo ficar firme nessa. A bem da verdade é que ainda não sei se tenho peito para continuar. Mas eu quero… vou até onde aguentar.

    *****
    Nina,
    Nos primeiros anos de trabalho eu sentia muito. Voltava para casa com a história triste da vida de alguém e ficava imaginando qual seria a mágica para transformar o universo daquela pessoa. Mas depois – não é que a gente se acostuma – mas é que a gente aprende que tem feridas que vão tão fundo que o outro não tem mais gana de lutar. Eu não posso viver a vida de um outro, apenas a minha e no fim é isso: meu melhor recurso é fazer meu trabalho com ética e seriedade pensando no melhor para aquela pessoa; sobretudo o melhor dentro da perspectiva dela e não da minha. Isso é difícil, guria… ser humano é pró para consertar os problemas dos outros, somos tão fantásticos para oferecer soluções que muitas vezes não servem. Acho que aprender a respeitar que uma pessoa pode querer nunca mudar e que pode querer nunca acreditar que a mudança de vida para melhor (não apenas dentro de uma perspectiva puramente econômica) pode acontecer é difícil, tanto ou quanto mais difícil do que ver o tamanho das feridas que esse povo carrega. O tempo ensina a gente.

    *****
    Deby,
    Você fez bem flor, não tem cara de enfermeira não! Hahahaha! Como se a profissão tivesse um padrão… em todo o caso, concordo com você: estava com muito medo de me envolver emocionalmente, estava muito nervosa porque nunca tinha encontrado pessoas que sofrem com abstinência as drogas… e na verdade ainda não encontrei. Vi meio de longe, mas não sei se eu sei lidar com isso. Mas pelo menos dessas vezes eu consegui deixar de lado sabe? To satisfeita… por enquanto. Às vezes é assim, temos que dançar conforme a música.

    Beijinhos flores!

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  7. Oi Simone!
    Essa é uma questão: trabalhar com gente tem sempre os seus “quês”; há dias que vai de vento em popa, há dias em que o navio afunda. Dentro da área social é super difícil porque se conseguimos ajudar alguém a alcançar uma vida melhor ou apenas o caminho para ela, viramos heroínas; se por acaso algo deu errado, viramos “os demônios”. Uma faca, dois “legumes”. Obrigada pela força!

    *****
    Carioca,
    Hahahaha! Eu te dou meu autógrafo! Mas logo, logo você vai sentir na pele que aqui na Suécia o trem é meio na marra, não sabe? Tem que ser cabeça dura e teimoso pacas senão… a gente se acomoda. Não que a vida num geral seja fácil, mas ser imigrante tem lá suas peculiaridades… Não quero posar como exemplo mas, se quiser um conselho é: não desista. Porque dá muita vontade…

    Beijos flores!

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  8. Eba, vou ganhar um autógrafo :D
    Nem me fale, fico pensando nisso, de como as pessoas olham para imigrantes. Ainda bem que existem pessoas como você para mostrar que somos capazes sim, basta querer e ter determinação para ouvir um “não” e ainda assim, seguir em frente.
    Beijos

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  9. Pingback: Enfim, o tão esperado emprego | Uma Caipira na Suécia

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