Socialkärring

Acordei de mau humor, dormi mal por causa de um torcicolo e tenho uma pilha imensa de roupas para passar. Roupa para passar, definitivamente, ninguém merece. Decidi empurrar com a barriga e aqui estou, a reclamar no blog.

Tenho trabalhado entre uma e duas noites por semana no meu emprego de behandlingassistent – que até agora eu não descobri ao certo como se escreve, já vi tudo junto e separado – e estou satisfeita por ter peitado o negócio e continuado. A cada dia trabalhado vou adicionando mais elementos a imagem a respeito do trabalho social na Suécia, em específico a questão de moradia. Eu digo imagem porque, como sou vikarie (substituta) eu sinto que muitas vezes sou deixada de lado no que se refere à informação. Algumas pessoas do grupo são muito ressabiadas e parecem ter se queimado com relação aos substitutos (estou sendo boazinha com eles agora) principalmente no que se refere a questão do sigilo – e vai lá saber que tipo de formação recebe uma assistente social no Brasil? Se eles soubessem que o Serviço Social brasileiro é regulamentado – ao contrário do SS sueco – e que eu posso perder o meu direito de exercer a profissão se der com a língua nos dentes…

Essa semana, assim como quem não quer nada, dei um cutucão no pessoal. Comentei que achava estranho que uma profissão do nível de responsabilidade do Serviço Social, na Suécia, não fosse regulamentada pois até no Brasil – imagine o Brasil, aquele país da “latinamerika“, em desenvolvimento – é. E faz tempo! É certo que precisamos de um sindicato no Brasil, mas no que se refere a fiscalização do exercício profissional estamos relativamente bem – se pensarmos a nível do tamanho do Brasil. Sempre achei um absurdo a taxa que pagávamos anualmente (ainda recebo os boletos, apesar dos inúmeros e-mails que mandei pedindo o cancelamento), mas o pessoal do Núcleo Regional de Serviço Social da minha região promovia até encontros mensais para debater questões relacionadas a profissão.

Fugi do assunto. Em todo o caso, vou ouvindo umas palavras ali e umas histórias aqui e vou formando a minha ideia a respeito do trabalho social em Göteborg, como já disse, no que se refere ao atendimento de pessoas/famílias permanente ou provisoriamente sem teto. E aqui poucas pessoas admiram ou curtem uma assistente social – tanto, que nós, ou melhor, elas recebem um apelido carinhoso: socialkärring. Bem, social todo mundo entende não? E kärring é nada menos do que um palavrão (no pejorativo; cadela ou velha chata, velha bruxa).

Pelo que entendi nas literaturas que andei pesquisando, o Serviço Social europeu passou por uma fase em que foram registrados muitos casos de abuso de poder profissional, principalmente no atendimento a crianças e adolescentes mas não raro também em outras áreas.  Se a gente espremer um pouco o cérebro vai lembrar de filmes em que a assistente social é a vilã da história, é ela que vem e separa a criança dos pais (biológicos ou não) fazendo com que eles tenham que lutar na justiça pelo direito de permanecer com os pequenos. Nesses filmes, a criança sempre vai parar num orfanato ou com pais adotivos esquisitos que fazem ela sofrer bem a estilo Cinderala mas a assistente social não entende isso, não vê ou às vezes é corrupta e quer a criança lá sofrendo, e não no ambiente em que ela tem a chance de ser feliz… drama! O duro é que aconteceu de verdade. Por causa dessas e de decisões pouco convencionais baseadas no “eu sou o profissional aqui e sei o que estou fazendo” onde assistentes sociais trataram de pessoas que não conseguiram levar a vida como o esperado como completos retardados – “você não sabe o que é bom para você/você escolheu até agora e veja no que deu/eu vou tomar as rédeas da situação”; o profissional é visto com certa desconfiança e tem uma fama bastante vulgar.

Já no Brasil, como o Serviço Social demorou mais tempo a se firmar com profissão e como a gente nunca chegou a provar uma política de assistência social mais consistente, permanente e séria antes de… agora (praticamente); a assistente social sempre foi vista como aquela moça boazinha que ajudava as pessoas e dava cesta básica.

É certo que essa é a primeira imagem que os professores tratam de desmanchar quando botamos os pés na universidade. Assistente social não é uma moça boazinha, assistente social é uma profissional que vai fazer valer leis e trabalhar com ética; e isso nem sempre significa “dar” o que as pessoas querem. Apesar das assistentes sociais suecas não contarem com a popularidades que nós, brasileiras, conta(va)mos; eu entendo que é exatamente aí – quando o querer do usuário bate de frente com o meu poder como profissional – que começa a confusão…

Eu acredito que deva ser imensamente difícil para algumas pessoas se dirigirem até um CRAS (no Brasil) ou socialkontor (na Suécia) para declarar a um completo desconhecido que “falharam” economicamente e precisam de ajuda.  Ao menos a primeira vez. E ainda mais numa sociedade como a nossa em que tudo gira ao redor do “ter”, ou seja, se você não pode “ter” as coisas da moda já é difícil (o que? você não tem um iphone? o carro do ano? uma TV 42′?) ; imagine então não “ter” nem o mínimo do mínimo para sobreviver. Isso te faz, seguramente, um fracassado. Agora imagine a dificuldade de assumir isso. E no Brasil, em muitos casos, você não recebe ajuda se “tem” um pouquinho: os recursos são escassos e você só será contemplado se não “tem nada”. É fácil ficar com raiva da assistente social e dizer que “ela” não quer ajudar.

Não tenho certeza absoluta que aconteça o mesmo por aqui e na verdade chuto que os critérios sejam muito diferentes, mas a atuação profissional é seguramente delimitada por questões financeiras – seja na quantidade de recursos destinados à área como expectativa do mercado. Por exemplo: a relação entre oferta e a procura por apartamentos em Göteborg é caótica, há muito mais gente procurando do que lugares disponíveis para morar e o valor do seu salário mensal é um elemento que faz diferença na lógica de “quem tem direito primeiro a esse apartamento”. Obviamente, você está praticamente fora ou o grau de dificuldade só aumenta se você é uma pessoa com problemas financeiros e que precisa de “ajuda do social” para viver. Há casos em que a própria kommuna paga o aluguel para as pessoas com sérios problemas econômicos, mas aí esbarramos no outro limite: a kommuna não disponibiliza recursos suficientes para pagar o aluguel de “todo mundo”. E não é o administrador da kommuna que tem de dizer isso a população sem teto… Infelizmente, nem sempre o assistente social pode ajudar e aí, bom, aí ele passa de socialsekreterare para socialkärring em um piscar de olhos.

Já acontece no Brasil, mas aí somos chamadas de bruxas. Aquela bruxa lá fica com o dinheiro do Bolsa Família todinho para ela! (OmG! Até as assistentes sociais vivem encostadas no governo…). Eu vi o monte de cestas básicas que ela esconde! (Essa é velha). O prefeito me prometeu mas daí aquela bruxa do CRAS disse que não! Hahaha, essa é minha favorita, eu gostaria que fosse sempre assim. Feliz ou infelizmente isso é um bom sinal (ao menos na maioria dos casos): nem sempre somos bem vistas quando fazemos o que devemos fazer e na terra dos jeitinhos seguir as leis é bem complicadinho. Rimou! Queria saber como rola a coisa por aqui…

Enfim, essa semana foi dia da Assistente Social no Brasil (em 15 de maio) e eu gostaria de dar os parabéns a todas as colegas “bruxas” brasileiras que fazem o seu melhor, lutando contra os contra tempos e se dedicando com ética; e que por mais que o povo desacredite às vezes e seja duro, são, lá no fundo, um bando de moças boazinhas querendo ajudar – hahahaha!

Parabéns pelo dia do Assistente Social!