Tem muita gente que fala da alta qualidade de vida da Suécia e cada um ressalta diferentes aspectos: a baixa taxa de criminalidade, os altos salários, a educação, o transporte público, entre outras coisas. Na minha opinião pessoal, qualidade de vida é aquilo que salta ao comum e, bem, não que todas essas coisas que citei antes não representem qualidade de vida mas, sinceramente, isso deveria (e eu sei que não é) ser padrão. Daí que para mim qualidade de vida de verdade é aquele tipo de serviço que eleva a condição de uma classe ou grupo de pessoas desfavorecidas ao mesmo nível de acessibilidade à serviços e políticas voltadas para as pessoas “comuns”.
Nesse sentido, um dos indicadores mais consistentes da qualidade de vida sueca é a LSS – ou Lag om stöd och service (lei de apoio e serviço) – para pessoas com deficiência física ou mental. Primeiro, faz tanto tempo que eu não lido com esses termos que eu peço perdão se estou usando a nominação errada. Segundo, a LSS não é uma lei em si e sim uma normativa, ou seja, ela regula um direito garantido por outra lei sueca, a SoL (Socialtjänst Lag – ou lei da política de assistência social).

O texto diz “uma vida com direitos” mas também “uma vida direita” – ou seja, a vida como ela deveria ser. Fonte: Nordassistans
A LSS é para pessoas com deficiência (retardo) mental, autismo e similares; assim como para pessoas com deficiência física congênita ou adquirida e também pessoas que – apesar de não se enquadrarem nas categorias acima – precisam de apoio/orientação para viver uma vida normal. Isso significa por exemplo que pessoas que nasceram com algum tipo de deficiência devido a paralisia cerebral ou pessoas que sofreram um acidente e após isso se tornaram deficientes tem os mesmos direitos. Mesmo pessoas com um histórico de graves doenças mentais ou dependência química – que acabam por desenvolver algum tipo de retardo mental ou psíquico – tem direito ao apoio oferecido pela lei.
A LSS estabelece como direito para esse grupo dez tipos diferentes de auxílio. Aqui eu vou apresentar uma versão bem simplificada deles:
Orientação e apoio – Pessoas com deficiência tem direito a consultas gratuitas com psicólogos, terapeutas, curadores, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos, enfim; profissionais que possam contribuir para a melhoria da qualidade de vida desses cidadãos tanto por meio de orientação verbal como indicação de diversas terapias e equipamentos que possam fazer a vida mais simples.
Assistência Pessoal – Bom, vocês já leram muitas histórias aqui das minhas aventuras como assistente pessoal. O assistente pessoal é as mãos, os pés e às vezes até a cabeça do deficiente: lavamos, passamos, limpamos, fazemos comida; mas também auxiliamos com todas as necessidades primárias (dar de comer, dar banho, levar ao banheiro, limpar a bunda) e com a diversão. Muitas vezes eu apenas sentei ao lado do Zé e assiste filmes com ele, ou li histórias para o Zezinho, brinquei de desenhar; saímos para passear… enfim. O direito a assistência pessoal é sempre avaliado por outra instituição sueca chamada Försäkringskassan (equivalente ao INSS) e é um serviço gratuito ao deficiente e pago pelas komunas, governos. Em outras palavras, a assistência pessoal tem o objetivo de fazer com que uma pessoa com deficiência possa desenrolar uma rotina diária sozinha e isso significa que a assistência está condicionada ao grau de dependência do indivíduo: se ele não pode fazer absolutamente nada sozinho, ele terá direito a assistência 24h por dia; ou enquanto ele está acordado, ou quando ele não está na escola, ou para fazer compras e sair para o mundo… sim, também é um direito do cidadão com deficiência sair para dançar, por exemplo, ou para nadar; se ele precisa de assistência pessoal para esses momentos, ele pode ter o direito até mesmo de ser acompanhado por dois assistentes (o que se chama de dubbelassistans – dupla assistência). Mas é claro que essa questão tem de ser aprovada primeiro pelo Försäkringskassan.

Reportagem do DN que diz: ela é as minhas mãos e os meus pés. Fonte aqui.
Acompanhante – talvez a pessoa em questão se vire muito bem com os desafios do dia a dia, mas precise de acompanhamento especial em determinadas situações. Quando o INSS sueco avalia que o indivíduo não tem direito a assistência pessoal ainda assim é possível obter o direito de ter um acompanhante para situações específicas.
“Relações públicas” – Essa foi a tradução livre que eu decidi empregar para o que o LSS chama de kontaktpersonen, uma pessoa que ajudará o deficiente a ter uma vida social mais animada, por meio de dicas, orientação e apoio sobre atividades para preencher o tempo livre. Esse “relações públicas”pode ser uma família, e nesse caso será chamada de stödfamilj – família de apoio.
Assistência 24h em casa – esse é um tipo de serviço que garante ao deficiente que ele será atendido caso algum dos equipamentos que ele usa no dia a dia estraguem. Por exemplo: a roda da cadeira de rodas trava; os freios da cadeira de rodas estouram (super importante ter os freios em pleno funcionamento quando a pessoa sai de ônibus, trem, carro), o cão guia ficou doente, o auxiliar de fala parou de funcionar… e agora? Quem poderá nos salvar? A assistência 24h.
“Férias de casa” – Mesmo que a maioria dos deficientes possam se integrar nas atividades sociais comuns (com alguma adaptação e ajuda), existem aqueles que, por motivo de doença ou extrema limitação, tem a atividades sociais muito delimitadas. O autismo pode ser um desses casos: pessoas autistas podem facilmente entrar em pânico na companhia de muitas pessoas. Cinema, danceterias, shows, e tudo o que implica a concentração de muita gente é terrível para alguns deles. Nesse caso, existe a possibilidade de ter “férias de casa” uma ou duas vezes por mês: o deficiente sai para um local que é adaptado para as necessidades dele, e aproveita para encontrar outras pessoas (sempre um número reduzido) como ele.
Korttidstillsyn för skolungdom över 12 år – Eu não sei exatamente como traduzir isso, mas explico: korttidsstillsyn é como um serviço em que alguém vai ficar com o adolescente (maior de 12 anos) um pequeno período antes ou depois da escola, ou ainda durante as férias escolares. A ideia é parecida com a de uma creche para crianças crescidas, que ainda precisam de acompanhamento mas não tem direito, por exemplo, a assistência pessoal; mas que enquanto os pais estão fora de casa (no trabalho) não podem ficar sozinhas.
Casa abrigo ou família adotiva para crianças e adolescentes – Toda criança e ou adolescente que não pode continuar a conviver com os pais biológicos tem direito a esse atendimento na Suécia e, no caso de crianças/adolescentes deficientes, a família adotiva e/ou casa abrigo deve ser um ambiente adaptado para as necessidades específicas daquela criança/adolescente.
Casa abrigo para adultos – quando a pessoa deficiente se torna adulta normalmente quer sair da casa dos pais (ou os pais fazem uma tentativa de tornar o filho/filha mais independente) e uma opção é mudar para uma casa abrigo para adultos. Nesses locais a pessoa vai ter o auxílio de uma equipe (não terá assistentes pessoais) e o seu próprio quarto, mas vai dividir a “casa” com outras pessoas deficientes. Assim quando ele/ela precisar de ajuda com alguma coisa em especial, alguém da equipe irá ajudá-lo. Em alguns casos há apartamentos especiais para pessoas adultas com deficiência onde não há uma equipe de apoio disponível – nesse caso cada morador deve ter o seu assistente (quando necessário) ou orientador.
Oficinas de atividades diárias – Por fim, para os deficiente que não podem ingressar no mercado formal de trabalho, há oficinas de atividades diárias (como as APAEs do Brasil) em que os deficiente podem se ocupar de atividades tanto que habilitem para a vida profissional como outras que funcionem como uma espécie de hobbie. Enquanto assistente pessoal eu fui várias vezes para uma dessas oficinas e aquela em que eu frequentei o pessoal que trabalhava lá fazia tudo bastante sério: havia a hora do início das atividades e cada um podia tomar café ou falar um pouco do seu dia anterior; depois cada qual ia para o seu “trabalho” (havia marcenaria, atividades de pintura, estúdio de música, de costura, atividades manuais, etc); ao meio dia era o lanche e siesta; 13h30 voltavam ao “trabalho” e às 15h o dia se encerrava. Em alguns dias da semana havia atividades diversificadas na cozinha, alongamento, hora para treinar e até para jogar video game (muitos deficientes podem jogar WII melhor do que eu – shame on me).
O post já está gigante mas eu gostaria de acrescentar três coisas. Primeiro, cada deficiente deverá ter um plano de desenvolvimento individual, que é um trabalho feito em conjunto por toda aquela porrada de profissionais que citei lá em cima, mas que deve ser aprovado pelo deficiente (no caso de ele não ter capacidade de decidir por si mesmo, pelo “padrinho” ou família). Esse plano tem como objetivo sempre buscar novas formas de terapia, equipamentos de apoio e atividades que irão melhorar a vida do cidadão. Segundo, tudo é gratuito a não ser que o deficiente receba uma espécie de pensão do Försäkringskassan pois, nesse último caso, alguns serviço serão cobrados (a assistência pessoal é sempre gratuita). Terceiro (mas não menos importante), existe uma lei de proteção ao deficiente chamada Lex Sarah. No caso de alguém ver, por exemplo, um assistente pessoal maltratando um deficiente, ou uma instituição maltratando um deficiente, ou a família, ou mesmo o Estado (negando um direito), pode fazer a denúncia e acionar a Lex Sarah.
Bom, se alguém quiser saber mais, deixe perguntas nos coments. Seria joia ter uma lei dessas no Brasil não seria? Que tal você que está lendo isso aqui, dar a ideia para um vereador bacana (e honesto) na sua cidade?
Dizem que trair e coçar, é só começar… eu acredito que mudar o mundo também.
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Fonte: Socialstyrelsen.