Diz a história que já no século XIII a Suécia introduziu uma lei de proteção à mulher intitulada kvinnofrid. Segundo essa lei, aquele que praticasse violência contra uma mulher poderia receber de açoites (40 chibatadas) à pena de morte. A lei foi introduzida por Birger Magnusson, um cavaleiro do rei sueco que se tornou tutor do herdeiro ao trono entre 1250 e 1266; e foi incorporada a “constituição” sueca em 1280, na qual permaneceu em forma de capítulo especial até 1864.
Já as más línguas dizem que essa lei era uma balela, uma forma de punir aqueles que ousassem molestar mulheres casadas – desde que os molestadores não fossem o próprio marido, obviamente. Pra deixar a coisa mais clara, uma mulher não podia representar a si mesma (legalmente) até meados do século XVIII e sempre precisava do intermédio do pai ou marido para prestar uma queixa. Assim sendo, apenas moças solteiras que fossem molestadas ou as casadas que sofressem violência de outrem que não fosse o marido usavam do princípio do kvinnofrid – ou melhor, os pais e maridos usavam desse aparato legal. Por isso, alguns dos textos que li apontam que o kvinnofrid era uma desculpa para lavar a honra dos machinhos de plantão.
Acabei mergulhando na história da legislação de proteção à mulher na Suécia por causa de um livro que li (gömda, em sueco, da escritora Liza Marklund). A história, baseada em fatos reais, conta a saga de Maria Eriksson, uma mulher em luta contra a violência absurda que ela sofreu tanto nas mãos do ex namorado quanto das autoridades suecas que deveriam protege-la. Dá uma baita raiva da humanidade e me deixou curiosa, uma vez que o enredo se passa no final da década de 80: a situação da mulher vítima de violência era tão ruim assim? Pergunta meio sem nexo, já que a situação da mulher vítima de violência no mundo é muito ruim. Muito ruim mesmo… mas sei lá, aqui é para ser o país mais avançado do mundo em questão de igualdade de gênero, imaginei que o buraco fosse mais embaixo.
E é.
Essa questão da representatividade legal, por exemplo: em meados do séc XVIII mulheres solteiras poderiam requisitar o direito de representarem a si mesmas ao rei. Ou seja, mulheres ricas e solteiras poderiam alcançar esse direito, que anteriormente cabia apenas a viúvas. Uma vez que se casassem, perdiam o direito de uma vez. Em 1858 o processo passa a ser mais simples e mulheres solteiras podem requisitar o direito de representarem a si mesmas ao juizado. Em 1863, mulheres solteiras maiores de 25 ganham automaticamente o direito legal de representarem a si mesmas; sendo que em 1884 basta que as solteiras tenham 21 anos. Somente em 1921 as mulheres casadas também passam a ter esse direito, que em 1974 passa a ser aos 18 anos.
Pode parecer meio sem nexo mas essa é uma questão fundamental. Como uma mulher poderia denunciar uma violência se ela não tinha direito a voz? Em todo o caso, no fim do século 19 o conceito de kvinnofrid é retirado da legislação sueca. Mas o termo seria resgatado na década de 80, num movimento feminista que culminou com a aprovação da kvinnofridskränkning lag (ou lei sobre o direito das mulheres livres – numa tradução livre) em 1998. Na verdade, o termo kränkning serve para definir um comportamento que gere mágoa, constrangimento ou violência (verbal, psicológica ou física); ou seja, a lei é sobre o que fere o direito das mulheres, uma espécie de “Maria da Penha” sueca.
A Maria da Penha sueca trouxe seis propostas principais. De forma geral, a lei ficou mais dura contra atos de violência contra a mulher, desde a pequenas ofensas ao estupro – quem não lembra do famoso caso de Julian Assange, que foge até hoje da justiça sueca por ter sido acusado de gozar em uma mulher sem o consentimento dela? – proibiu a prostituição e instituiu uma política de igualdade de gênero, para que o Estado tome atitudes concretas para inclusão da mulher no mercado de trabalho, entre outros.
Não dá para detalhar toda a lei, até mesmo porque de lá para cá algumas coisas foram redigidas e se tornaram ainda mais claras/detalhadas/afiadas. Uma, que se passaram quase vinte anos e outra que a criatividade dos advogados de defesa não tem limites: há pouco tempo ouvi no rádio o caso de um estuprador que, apesar do estupro evidente, foi absolvido porque afirmou que estava dormindo. O estupro pôde e foi provado, mas ninguém podia provar que o estuprador não estava dormindo. É ou não é pra acabar? Mas uma das coisas que acho interessante é que se você presencia um ato de violência contra uma mulher e não denuncia você pode se tornar cúmplice e pegar cadeia junto com os agressores.
Em todo o caso, uma das questões mais peculiares dessa lei é a questão da prostituição: na Suécia é proibido comprar sexo, mas não é proibido vender. É, eu sei que dá um nó, também demorou caras para minha ficha cair. Esse modelo ficou conhecido como “modelo nórdico” porque foi recentemente adotado também pela Noruega e Finlândia e até agora tem se mostrado muito eficaz no combate à exploração sexual de mulheres. Eu sei que muita gente insiste no discurso “a prostituição é a profissão mais velha do mundo” mas a realidade é que a prostituição – na imensa maioria dos casos – é uma forma de violência contra a mulher. Nenhuma mulher com condições de escolher o que fazer da vida vai escolher se prostituir (surfistinhas são exceções). Quando a prostituição é criminalizada sem que a vítima o seja fica mais fácil para as autoridades desmontarem cartéis de tráfico humano (quem nunca assistiu Lilian forever eu recomendo, mas não assista se estiver deprimid@).
Segundo uma pesquisa de 2014 realizada em Stockholm, cerca de 7,5% dos homens suecos entre 18 e 65 anos confessaram ter comprado sexo ao menos uma vez na vida; mas menos de um por cento deles disse ter feito isso no último ano (há, sabe de nada…). O número de mulheres que vendem sexo na rua caiu mais do que pela metade desde 1995 (cerca de 200 a 250), mas os anúncios de serviços sexuais online aumentaram consideravelmente e mostram, inclusive, que o número de jovens rapazes que vendem sexo é maior do que o número de jovens mulheres. O instituto de pesquisa (no caso, do estado de Stockholm – tipo o distrito federal) disse que precisa de estudos mais detalhados antes de afirmar se os anúncios online indicam o crescimento da prostituição ou só o desenvolvimento dos meios de marketing desse tipo de serviço. Em todo o caso, o documento indica a necessidade de intervenção junto a jovens para buscar entender porquê eles estão recorrendo a prostituição, principalmente os rapazes.
Apesar da rigidez da lei, como comentei, ainda há muita impunidade. As autoridades suecas acreditam que cerca de 80% dos casos de violência contra a mulher não são denunciados porque são praticados por alguém muito próximo a vítima. Ainda assim acredito que seja um bom exemplo de como tentar promover mulheres realmente livres.
Fonte: Wikipédia, Aftonbladet e Stockholm länsstyrelsen.