Eu acho que cinco anos fizeram um buraco na minha cabeca, porque quando eu era funcionária pública no Brasil e trabalhava de segunda a sexta-feira eu ainda tinha vida pós trabalho. Agora a impressão que eu tenho é que depois que eu chego em casa eu preciso urgentemente comida e cama…
Claro que nada é igual. Há cinco anos atrás eu não tinha marido, filho, e nem toda uma casa pra limpar (que aliás, eu só limpo no sábado). Mas é fato de que a profissão de assistente social é classificada – na Suécia – como uma das mais difíceis – se você trabalha nos escritórios de assistência social, os chamados socialkontor. Se você joga no google palavras como stress e assistência social juntas aparecem uma série de artigos relacionados, tanto partindo de sindicatos como de outros instrumentos de pesquisa que citam a profissão como uma das piores do país em relacão ao ambiente de trabalho e número de trabalhadores afastados devido a esgotamento nervoso.
Eu sei o que você está pensando, mas eu sou Tomé: tenho que ver para crer. No caso, fazer para crer. E agora eu creio: trabalhar no escritório de assistência social tem me deixado mais cansada do que eu posso me lembrar em toda a minha vida. A carga de trabalho é grande, e como eu sou novata ainda demoro muito para fazer qualquer coisa, e como eu não tenho sueco como língua materna demoro muito para escrever relatórios e aí já lascou-se tudo. A sensacão é de que eu tenho trabalho atrasado desde o segundo dia em que comecei. Agora, depois de cerca de três meses, tenho me sentido bastante chateada com isso porque eu tinha a esperanca que fosse alguma coisa relacionada a minha falta de jeito. Infelizmente, falando com outras colegas descobri que não sou a única que me vê na mesma situacão e que aquelas que estão mais tranquilas o estão porque ligaram o foda-se literalmente e não se importam o mínimo com o trabalho acumulado.
O sistema funciona mais ou menos da seguinte forma: se você tem problemas econômicos entra em contato com o servico de assistência social, que nesse caso se chama stöd och försörjningstöd – apoio e auxílios financeiros (na verdade o substantivo försörjning se traduz melhor como “independência financeira”); e pede para marcar uma entrevista com uma assistente social. Dentro de alguns dias você encontra a assistente social e tem que estar munido de uma série de documentos que mostram que você faliu financeiramente (seu dinheiro está acabando e você não tem como pagar as contas do próximo mês) e você não tem mais nenhum tipo de reserva – não é possível ter uma poupanca e receber auxíllio do social, ou um carro, ou uma casa, ou… bens materiais de muito valor; e que você tem feito tudo o que poderia para resolver a sua situacão sozinho. Essa última parte significa que, se por exemplo, você ficou desempregado, tem procurado empregos por meio da agência de empregos e tem um plano lá; ou que caso você esteja doente você esteja seguindo a risca o tratamento. A assistente social que atende o usuário vai escrever um relatório socio econômico analisando a situacão do indivíduo e emitir um parecer em um prazo que normalmente gira em torno de 10 dias. Nesse parecer o mais importante é responder a duas perguntas: essa pessoa realmente está falida? e ela fez todo o possível para resolver essa situacão sozinha, buscou outras formas de ajuda antes de se voltar ao escritório de assistência social? Se a resposta para as duas questões é sim, a pessoa tem direito a auxílio financeiro – ekonomiskt bistånd. Ou seja, eu trabalho como o bolsa família sueco.
Todo o atendimento no setor de apoio e auxílio finaceiro é individualizado. Isso significa que cada caso será analizado individualmente e depois que o assistente social escrever o relatório mesmo que a resposta às questões acima não sejam exatamente um “sim e sim” no parecer e sejam, por exemplo, um “sim e sim, mas…” o usuário pode receber auxílio. Quando o relatório social e econômico fica pronto é hora de fazer outro documento, o plano de trabalho ou projeto de trabalho. Nele o assistente social e o usuário vão definir o que o cidadão precisa fazer para conquistar a independência financeira. O plano sempre inclui uma série de fatores mas alguns deles são essenciais e se o cidadão não os cumpre não recebe auxílio para aquele mês em específico.Isso porque o fato de você receber o auxílio uma vez não faz com que o direito ao auxílio seja automático. Na verdade, o auxílio é avaliado mês a mês.
Ao contrário do bolsa família brasileiro, o bola família sueco não é formado apenas por valores definidos. A grosso modo podemos dizer que há um auxílio básico, esse sim é um valor definido que muda apenas de acordo com a idade do cidadão. O bolsa família sueco é formado de diversos auxílios complementares, entre eles aluguel, luz, o seguro da casa, cartão de ônibus e internet (varia de município para município) e auxílios eventuais, que são gastos com medicamentos e consultas ao médico, dentista, a compra de óculos e auxílio funeral, entre outros. Mas esse é um capítulo a parte que daria por si só um post gigante.
Se você tem problemas muito sérios, tais como aluguéis atrasados que fazem com que você possa perder seu apartamento e nem um puto pila no bolso (e quando eu digo nem um puto pila eu estou realmente dizendo isso: sua conta bancária deve estar no zero) quando sua geladeira está vazia você pode receber auxílios emergenciais para pagar o aluguel e comprar comida no momento em que você procura o escritório de assistência social. Nesses casos o assistente social emite um parecer baseado nas informacões disponíveis quando o usuário se volta para o sistema, e depois de receber uma pequena ajuda só para que ele não seja jogado na rua e ou morra de fome, o usuário entra na roda como todo mundo e vai ter que esperar por uma entrevista, relatório e parecer social para continuar recebendo algum tipo de auxílio.
Assim falando parece um sistema muito enxuto no qual é difícil de entrar. É e não é. Para que qualquer pessoa possa receber auxílio econômico ela tem que apresentar um extrato bancário. E nós assistentes sociais temos que analisar esse extrato bancário. Dos últimos três meses. Por quê? Porque se você estava na merda, sabia que não tinha dinheiro e continuou gastando como se tivesse um salário pra cair na conta vai dancar. Mas vocês podem imaginar que esse tipo de decisão não é muito fácil de comunicar a um usuário…
Se eu disse que o trabalho como assistente social é classificado como um dos mais extenuantes da Suécia, trabalhar com o bolsa família sueco está no topo da lista entre os piores trabalhos que o assistente social pode fazer. Pessoalmente não sei o que pensar, estou muito crua ainda e nem peguei o jeito, além do quê eu tenho problemas sérios em ter de escrever tanta documentacão numa língua que é razoavelmente nova para mim. Mas de modo geral as assistentes sociais aqui reclamam do mesmo que reclamamos no Brasil: salários muito baixos diante da carga de trabalho, e carga de trabalho que é realmente uma sobrecarga de trabalho.
Eu quis escrever esse post para dividir um pouco dessa experiência em um mundo novo, ou uma nova dimensão de um mesmo mundo – uma visão ainda um tanto crua e baguncada – como homenagem a todas as assistentes sociais brasileiras. Um viva as minhas colegas de profissão e forca na peruca gente… vamos precisar!