Repost: violência doméstica, onde buscar ajuda?

Fonte: imagem ONU Mulheres (http://www.un.org/en/events/endviolenceday/)

Há cerca de dois anos escrevi na página do Facebook um texto com orientações sobre o que fazer em caso de violência doméstica aqui na Suécia. Reposto em razão da campanha da ONU Mulheres 16 dias contra a violência contra a mulher.

A Suécia conta com uma linha para denúncias que é o 020 505050. Mesmo que você tenha dúvidas a respeito de se a situação na qual você vive é ou não violência doméstica, converse com alguém sobre isso. Pode usar o “uma amiga está passando por uma situação assim” ou nem precisa se identificar. Essa linha tem atendimento em português, inclusive, então você não precisa falar sueco ou inglês para obter informações. No entanto importante saber que o 020 505050 só pode te ouvir e orientar. Eles não oferecem outro tipo de atendimento.

– Em algumas cidades o BVC e o MVC (centro de saúde da crianca e o centro de saúde da mulher) ficam em uma organização chamada de familjcentral. Normalmente nesses centros há uma psicóloga e assistente social trabalhando. Uma das tarefas delas é prestar apoio a mulheres vítimas de violência. Assim que você pode aproveitar a visita ginecológica ou a pesagem do bebê contar para a barnmoska ou a barnsköterska a respeito “daquela sua amiga” que está passando por umas situações estranhas em casa ou simplesmente dizer que gostaria de conversar com uma assistente social porque está pensando em se separar e não sabe como agir. A barnmoska pode ou não tentar entrar em detalhes e fica a seu critério o que você vai contar. Já para a assistente social é importante botar todas as cartas na mesa para que ela possa te dar a orientação correta.

– Existem advogados que prestam serviço de orientação jurídica gratuita no medborgarkontor (escritório do cidadão). Normalmente essas consultas não podem tomar mais de quinze minutos, mas você pode nesses quinze minutos receber o contato para um advogado especializado em direito de mulheres vítima de violência. Esses tipos normalmente oferecem uma consulta gratuita para explicar para a mulher como ela deve proceder em caso de ela querer se divorciar por causa de violência. Eles inclusive te orientam a como fazer para arcar com os custos de eventuais processos (sabia que o seu seguro da casa pode cobrir esses custos nas maioria dos casos?).

– Em caso de cárcere privado ou de você ter de se trancar num canto da casa para fugir de porrada não duvide: ligue a polícia (112). A polícia sueca é treinada para dar apoio a mulher vítima de violência e (eu espero que sempre) fica ao lado da mulher. Se você chegou ao limite e decidiu que não pode/quer mais ficar com seu parceiro mas ele te impede de sair de casa, ligue a polícia. Você explica a situação é pede escolta para juntar as suas coisas e as criancas (caso você tenha). Eles te deixam no escritório de assistência social mais próximo onde você pode contar sua situação e pedir abrigo.

– Mulheres vítimas de violência tem direito a abrigamento por meio do escritório de assistência social. Infelizmente tem muito filho de cachorro trabalhando nos escritórios de assistência social que prestam um servico de bosta. De modo geral o assistente social não está lá para encorajar ninguém a dar outra chance para o parceiro e sim para avaliar se a pessoa pedindo ajuda precisa de um abrigo secreto ou um lugar num abrigo comum. Em ambos os casos a mulher será abrigada com os filhos – se tiver fugido com eles. A diferenca entre abrigos secretos e normais são que os abrigos secretos são para mulheres que tem medo de que o parceiro roube as criancas, ou venha atrás dela se vingar, tenham sofrido violência física ou estejam ameaçadas de morte. Abrigos normais são para mulheres que sofreram violências “mais leves”. Eu acho importante salientar aqui que nem sempre a mulher vítima de violência tem noção do tamanho da violência que ela sofre, ou de quão grave ela é. Já vi mulheres que o parceiro tentou estrangular dizerem que não precisam de um abrigo secreto. Em todo o caso, os abrigos em geral oferecem acomodações simples, cozinha comunitária, e o tempo de abrigamento varia de caso a caso. Infelizmente nem toda a mulher abrigada consegue um apartamento por meio do social (sim, triste mas verdadeiro), por isso fica mudando de endereco de tempos em tempos (o que é muito complicado). Mulheres vítimas de violência que não tem trabalho ou algum tipo de renda podem pedir auxílio econômico e o receber-lo enquanto tiverem o desejo de se separar. Se a mulher decidir voltar para o seu parceiro no entanto o benefício é cancelado.

Enfim, gostaria de acrescentar que caso você não fale inglês ou sueco tem o direito de solicitar um intérprete gratuitamente, mesmo que você chege no escritório de assistência social de uma hora para outra. Em caso de consultas pré agendadas peça a presença do intérprete com antecedência. Só para constar, todos os profissionais que trabalham com mulheres vítimas de violência (e são bons profissionais) tem boca de siri. E por último mas não menos importante, deixar uma relação violenta sempre conta como um ponto a favor da mãe (no caso de existirem crianças). Para o serviço social sueco mais vale uma mãe pobre com suas crias embaixo do braço pedindo auxílio do social do que uma mãe que não deixa o parceiro violento por medo da pobreza. Difícil, mas não é considerado negligência ser pobre e sim expor as crianças à um parceiro violento.

Brasil, ame-o ou deixe-o

Parece piada mas, já que passei boa parte do processo eleitoral no Brasil e ousei me meter em discussões (mulher que tem opinião é metida) ouvi de vários conhecidos e desconhecidos “um pra você é fácil ficar falando, só que você é de fora e não conhece a realidade brasileira”. Um tipo gentil de cala boca. Normalmente seguido de “volta pra cá se está achando tão bom” ou “por que não muda pra um país comunista?”

A Suécia é socialista para muito estadunidense. Enquanto metade da galera que tem um posicionamento político de direita jura que a Suécia é um país de direita e que foi o capitalismo que salvou o país (e foi); outra metade enquadra a Suécia no mesmo pelotão de países socialistas como… digam um qualquer aí. Essa galera jura que os suecos não se tocaram que vivem num comunismo, com um governo que decide tudo (inclusive aonde você pode comprar bebida alcoólica).

Se a coisa vai nesse pé num país desenvolvido, porque seria estranho que tantos brasileiros vivam uma dissonância entre a realidade e o que eles acreditam que é a realidade? Porque a gente é um país que não lê mas principalmente não sabe questionar o que lê, porque temos complexo de irmão caçula e de vira lata e por causa da violência da nossa educação (fechem as universidades, eu tenho todas as respostas).

Essa coisa de crescer dentro de um sistema educacional violento, eu não me refiro a escola e qualquer doutrinação que a galera do escola sem partido se refere. Eu me refiro a educação que a gente recebe em casa mesmo. E sei que muita gente vai protestar do tipo “palmada não mata, ensina” e eu vou concordar: palmada ensina mesmo, ensina muito, ensina que quando é enquanto você puder usar da violência e estiver no topo da cadeia você resolve tudo. A gente vive tão violentado que não percebe. A gente nasce e cresce dentro de núcleos familiares onde existe o certo e o errado, separados muito bem separados por uma linha imaginária. O certo é bom, o errado é mau, e ponto. Ser e estar certo evita sofrimento (físico, psicólogo) e estar certo nos causa bem estar ou simplesmente um sentimento de ufa!, escapei. Quando aprendemos a resolver tudo na base de gritos e pontapés não é estranho que tenha gente ameaçando de morte quem pensa diferente. Sempre que eu me sentir maior ou melhor do que outra pessoa vou fazer valer “o meu certo”, vou fazer todo mundo me engolir, nem que tenha de ser goela abaixo – ou seja, usando de violência.

Pra muitos de nós brasileiros a Suécia só pode ser socialista ou só pode ser capitalista, ela não pode ser uma coisa e também outra coisa. Não existe essa de um pé lá e outro cá, 18, 28, 58… Muito menos 9, 33 ou 77. É 8. Ou 80. E quem decide se é oito ou oitenta é quem manda. Manda quem tem mais – mais dinheiro, mais testosterona, mais poder. Eu pirei meu cabeção nessas férias. É incrível como a mulher brasileira só tem direito de fala se for pura, puríssima, mais alva do que a Branca de Neve. Porque te mandam calar a boca até porque você tem uma espinha na cara. Fulana não tem moral, ela tem caspa!!!

Cidadãs crescidas são tratadas como retardadas mas quem está na última casta dessa cadeia de violência são as crianças. E mesmo assim querem queimar o ECA em praça pública porque essa lei de merda acabou com o direito dos pais – como se o único dever dos pais fosse dobrar os filhos na base da porrada. Engraçado pensar que eu tenho uma lembrança dessa necessidade de me tornar maior, mais velha e mais forte para poder mandar em alguém. Mas a gente esquece quando cresce… ou não. A minha criança interior não aguenta ver tanta gente ríspida: mal dormida, mal comida, mal amada. Tanta gente precisando esculachar o outro pra se sentir bem. A minha criança interior chora de pensar que enquanto pra mim cala-boca-já-morreu-e-quem-manda-aqui-sou-eu ainda tem todo um Brasil de gente sendo violentado diariamente sem armas mas de forma escancarada, escandalosa, que deixa feridas na alma. Quando as pessoas me dizem que deixaram o Brasil por causa da violência eu me pergunto: será que fora do Brasil elas percebem o quanto são violentas? Se a gente pudesse fazer essa auto crítica (que graças a Deus já começou em muitos corações brasileiros) não teria de escutar “vai pra Cuba” ou “pra Venezuela” tantas vezes.

Eu já sabia. Tenho trabalhado isso bastante desde que o Benjamin nasceu por meio de terapia. Porque bem lá no fundo eu quero vencer na força. Eu quero dobrar os outros. Tenho uma necessidade absurda de provar que estou certa, que tem que ser do meu jeito. Eu vou para o Brasil e vejo esse meu comportamento (que eu não quero mais) sendo esfregando diariamente na minha cara. Resultado: saí do Brasil triste, mas aliviada. Cansei da brutalidade. Essa aí que está na nossa pele no dia a dia. O assalto, o assassinato é o resultado desse feijão com arroz nosso de violências cotidianas, aquelas que a gente faz e que a gente não vê mas que minam a nossa auto estima e acabam com a nossa energia.

O que me entristece é ter consciência de que essa discussão está longe de chegar na mesa do brasileiro porquê tem muito mais coisas que o cidadão precisa resolver. O brasileiro vive sem tempo pra pensar e poder planejar, vive correndo atrás de estabilidade. Na Suécia isso tem de sobra, aí temos tempo de roer nossas neuroses. Eu já estou aqui roendo a minha: como é possível amar essa bagunça toda chamada Brasil?

A boneca do poço

Não estou falando de filme de terror. Hallowen já passou apesar de que no Brasil a caça às bruxas continua.

Recentemente “li” (ouvi) a tetralogia Os Emigrantes do autor sueco Vilhelm Moberg que trata da saída em massa dos suecos para os EUA durante a segunda metade do século XIX. A obra segue a saga da família de camponeses de Karl-Oskar e Kristina Nilsson que, fugindo da fome, enfrentam uma longa viagem num barco a vela até Nova York com três crianças pequenas. Depois, se fixam no território selvagem de Minesota a beira do lago Ki-Chi-Sago, atualmente Chisago County.

Desde janeiro ando buscando informações sobre meus antepassados italianos e, também por isso, a saga Os Emigrantes mexeu muito comigo. Mas mais do que isso, o autor soube descrever de forma formidável as duas faces da imigração que vivem brigando dentro de cada imigrante: Karl-Oskar está decidido que Minesota é maravilhosa, mesmo que ele tenha que lutar muito para botar em ordem seu pedaço de chão enquanto Kristina vive suspirando pela Suécia que ficou para trás, ainda que a vida no novo mundo lhe traga gratas surpresas.

Eu sofro muito sempre que deixo o Brasil. Sofro porque assim que as portas do avião se fecham eu sei que vou adentrar a zona europeia, o velho mundo de onde tantos fugiram para escapar da fome mas que hoje fecha as suas portas para aqueles que querem fazer o caminho oposto. Sorte minha não ter fugido da fome para cá e ter adentrado este território meio que na birra. Azar o meu ter perdido meu coração para um europeu. Sorte minha ele ser sueco e não húngaro. Azar o meu a Suécia ter nove meses de inverno…

Mas pra não ficar nessa lista interminável, Moberg fala de uma coisa que bateu fundo na minha alma: a saudade que Kristina sente pela Suécia está enraizada na imagem da Suécia que Kristina guarda na memória. A analogia que ele faz no livro é a seguinte: Kristina tinha uma boneca de porcelana, de rosto redondo e branco, touca e um vestido de seda azul. Um dia, quando buscava água, Kristina derrubou a boneca por acidente dentro do poço. Era possível ver a boneca, ou ao menos uma parte dela, e Kristina ficou inconsolável. Seu pai e irmãos não mediram esforços para resgatar a boneca, ainda que em vão. Por muito tempo foi possível vislumbrar a seda azul do vestido da boneca, e apesar de Kristina ter ganhado uma nova boneca semelhante a anterior ela se dirigia constantemente para o poço para espiar a boneca perdida. Como era linda. Na memória de Kristina a boneca perdida era mais bonita do que a atual, o tecido do vestido mais brilhante (apesar de estar mergulhado há tempos na água), o rosto era mais bem desenhado, a porcelana mais suave ao toque.

O Brasil que guardo na memória é sempre mais quente, caloroso, mais feliz. Eu fico meio chocada de ver aranhas e baratas pra todo o lado. Meu primo matou uma cascavel dia desses no sítio em que mora. Tem mais passarinhos cantando (e cagando na cabeça da gente) do que eu possa me lembrar – eu até vi um pica-pau no jardim. Tem chefe gritando com os funcionários. Tem chefe ameaçando funcionárias porque elas engravidam. Tem homem assobiando na rua atrás da gente, quando se tem sorte. Tem gente chamando mulher de vadia e puta o tempo inteiro. Curitiba é cinza. É barulhenta. O som do tráfego intenso de caminhões me dá medo. Caminhoneiro não respeita limite de velocidade. Todo mundo dirige colado na sua bunda. Todo mundo ultrapassa em faixa contínua e na curva. Tem gente pedindo em cada sinaleiro. Tem gente dormindo embaixo da ponte, no meio do calçadão. Tem gente morando no barranco, numa casa que lembra um ninho de falcão. Tem pastor com cabine dupla. Tem playboy gastando gasosa na avenida de um km de comprimento, pra cima e pra baixo. Tem competição de som na porta da casa das pessoas. Tem a vizinha ouvindo gospel no último volume (toda quarta e quinta – aleluia). Tem bolo de chocolate no café da manhã. Tem coca cola na mamadeira. Tem criança obesa, diabética e hipertensa aos nove anos. Tem violência. No campo. Na cidade. No trânsito. No parquinho da praça. No escritório. Dentro de cada casa. Dentro de cada boca gritando impropérios. Dentro de cada mão se fechando num soco e perna se estendendo num chute.

Mas agora eu estou aqui em Nárnia e o Brasil… o Brasil é a minha boneca que caiu no poço.