Não estou falando de filme de terror. Hallowen já passou apesar de que no Brasil a caça às bruxas continua.
Recentemente “li” (ouvi) a tetralogia Os Emigrantes do autor sueco Vilhelm Moberg que trata da saída em massa dos suecos para os EUA durante a segunda metade do século XIX. A obra segue a saga da família de camponeses de Karl-Oskar e Kristina Nilsson que, fugindo da fome, enfrentam uma longa viagem num barco a vela até Nova York com três crianças pequenas. Depois, se fixam no território selvagem de Minesota a beira do lago Ki-Chi-Sago, atualmente Chisago County.
Desde janeiro ando buscando informações sobre meus antepassados italianos e, também por isso, a saga Os Emigrantes mexeu muito comigo. Mas mais do que isso, o autor soube descrever de forma formidável as duas faces da imigração que vivem brigando dentro de cada imigrante: Karl-Oskar está decidido que Minesota é maravilhosa, mesmo que ele tenha que lutar muito para botar em ordem seu pedaço de chão enquanto Kristina vive suspirando pela Suécia que ficou para trás, ainda que a vida no novo mundo lhe traga gratas surpresas.
Eu sofro muito sempre que deixo o Brasil. Sofro porque assim que as portas do avião se fecham eu sei que vou adentrar a zona europeia, o velho mundo de onde tantos fugiram para escapar da fome mas que hoje fecha as suas portas para aqueles que querem fazer o caminho oposto. Sorte minha não ter fugido da fome para cá e ter adentrado este território meio que na birra. Azar o meu ter perdido meu coração para um europeu. Sorte minha ele ser sueco e não húngaro. Azar o meu a Suécia ter nove meses de inverno…
Mas pra não ficar nessa lista interminável, Moberg fala de uma coisa que bateu fundo na minha alma: a saudade que Kristina sente pela Suécia está enraizada na imagem da Suécia que Kristina guarda na memória. A analogia que ele faz no livro é a seguinte: Kristina tinha uma boneca de porcelana, de rosto redondo e branco, touca e um vestido de seda azul. Um dia, quando buscava água, Kristina derrubou a boneca por acidente dentro do poço. Era possível ver a boneca, ou ao menos uma parte dela, e Kristina ficou inconsolável. Seu pai e irmãos não mediram esforços para resgatar a boneca, ainda que em vão. Por muito tempo foi possível vislumbrar a seda azul do vestido da boneca, e apesar de Kristina ter ganhado uma nova boneca semelhante a anterior ela se dirigia constantemente para o poço para espiar a boneca perdida. Como era linda. Na memória de Kristina a boneca perdida era mais bonita do que a atual, o tecido do vestido mais brilhante (apesar de estar mergulhado há tempos na água), o rosto era mais bem desenhado, a porcelana mais suave ao toque.
O Brasil que guardo na memória é sempre mais quente, caloroso, mais feliz. Eu fico meio chocada de ver aranhas e baratas pra todo o lado. Meu primo matou uma cascavel dia desses no sítio em que mora. Tem mais passarinhos cantando (e cagando na cabeça da gente) do que eu possa me lembrar – eu até vi um pica-pau no jardim. Tem chefe gritando com os funcionários. Tem chefe ameaçando funcionárias porque elas engravidam. Tem homem assobiando na rua atrás da gente, quando se tem sorte. Tem gente chamando mulher de vadia e puta o tempo inteiro. Curitiba é cinza. É barulhenta. O som do tráfego intenso de caminhões me dá medo. Caminhoneiro não respeita limite de velocidade. Todo mundo dirige colado na sua bunda. Todo mundo ultrapassa em faixa contínua e na curva. Tem gente pedindo em cada sinaleiro. Tem gente dormindo embaixo da ponte, no meio do calçadão. Tem gente morando no barranco, numa casa que lembra um ninho de falcão. Tem pastor com cabine dupla. Tem playboy gastando gasosa na avenida de um km de comprimento, pra cima e pra baixo. Tem competição de som na porta da casa das pessoas. Tem a vizinha ouvindo gospel no último volume (toda quarta e quinta – aleluia). Tem bolo de chocolate no café da manhã. Tem coca cola na mamadeira. Tem criança obesa, diabética e hipertensa aos nove anos. Tem violência. No campo. Na cidade. No trânsito. No parquinho da praça. No escritório. Dentro de cada casa. Dentro de cada boca gritando impropérios. Dentro de cada mão se fechando num soco e perna se estendendo num chute.
Mas agora eu estou aqui em Nárnia e o Brasil… o Brasil é a minha boneca que caiu no poço.
Tipo isso, amiga. eu tenho a sensação oposta: sempre penso no que deixei de viver ao sair da Suécia. No que deixei de oferecer aos meus filhos, e no que deixei de aprender. Dos lugares que não conheci e que, talvez, nunca conheça.
Tenho saudades do frio, do outono, e esqueço que já chorei de dor nos dedos ao pedalar no inverno. Que meu filho sofria com a falta de sucesso na comunicação por causa da dificuldade de fala que tinha e que a gente sempre era seguido nas lojas por causa da nossa aparência que eles julgavam árabe.
Mas sempre penso na Suécia e nas suas paisagens e no gostoso das folhas de outono caindo e na tranquilidade em andar com as crianças nas ruas e de pedalar de mini saia sem medo.
É a vida, né?
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Bonito e inspirador texto! Gratidão
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Que texto lindo! Obrigada por descrever tão lindamente estes sentimentos paradoxais que todas nós vivemos eca entre Suécia e Brasil.
Parabéns!
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Que texto lindo. Minha boneca tbm está lá no fundo do poço…
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Belo texto, Maria Helena. A analogia da boneca no fundo do poco representa bem esse sentimento de romantizar o que nao temos mais.
Hoje mesmo sonhei que tinha me mudado de volta pro Brasil pra recomecar a minha vida lah, foi um sonho bom. Mas na minha realidade nao ha chances de isso acontecer porque se de um lado eu amo o Brasil, por outro lado eu tenho horror ao Brasil e nao me vejo morando la novamente.
Mas sonhos sao manifestacoes do nosso subconsciente….
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Muito lindo seu texto! Obrigada por descrever em uma texto tantos sentimentos que muitas vezes nós vivemos.
Parabéns!
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