Diário Caipira – 55

Vinte graus e sol.

Vinte graus, sol e vento frio.

Vinte graus, sol, vento frio e areia quente sob os pés.

Vinte graus, sol, vento frio, areia quente sob os pés e as crianças que correm pra dentro e pra fora d’água gelada do lago.

Vinte graus, sol, vento frio, areia quente, as minhas crianças que correm pra dentro e pra fora d’água gelada do lago com os lábios azuis, a pele arrepiada e o queixo batendo.

Vinte graus, sol, vento frio, areia quente sob os pés, as minhas crianças correndo pra dentro e pra fora d’água gelada do lago com os lábios azuis, a pele arrepiada, o queixo batendo… e eu tentando convencê-las que tem que se secar, esquentar o corpo, ir pra casa.

Vinte graus, sol, vento frio, areia quente sob os pés e crianças que fazem “birra” porque não querem sair de dentro da água gelada do lago.

Vinte graus, sol, vento frio, areia quente sob os pés; uma mãe brasileira de casaco tentando convencer pequenos vikings a sair da água gelada de um lago por morrer de medo do “vento torto” que tanto falavam lá no Brasil (vai que esse menino pega uma pneumonia!).

Ah, hoje é dia das mães na Suécia. Feliz dias das mães a todas nós que precisamos enfrentar as desventuras de ser mãe longe de casa e sob choque de cultura constante; mesmo quando fazem 20graus e tem sol.

Memórias de um Caracol-3

Quando a gente sai encaracolar sempre faz bastante paradas. Só porque é legal fazer isso e pra transformar a viagem em si (que pode ser um tanto chata), em algo mais bacana. Além disso rola meio que um ritual e todo mundo de trailer ou de “motorhome” para bastante.

Nessas paredes sempre dá pra ver uns caracóis gigantes e cheios de paranauês. Normalmente tem a ver com tecnologia, conforto, mas depois de uma determinada faixa de preço é só… luxo mesmo. Nosso caracol funciona a gás e luz elétrica. Gás para cozinhar, mas também como fonte de energia para manter a geladeira funcionando quando não há possibilidade de ligar na luz e ligar o aquecedor. Pode crer que o aquecedor é necessário durante a noite.

A gente (marido) fez umas adaptações e temos um painel solar que carrega a bateria. A geladeira e o aquecedor precisam de muita energia e não funcionariam apenas a base da bateria mas assim temos lâmpadas e tomadas funcionando mesmo se não estivermos conectados a rede elétrica.

Geladeira pra guardar comida, fogão pra cozinhar e calor. Ah, isso e mais o banheiro e voilá, temos um fantástico caracol.

Diário Caipira-54

Eu sou uma caipira de araque que nunca morou num sítio. Mas vocês já entenderam o porquê do caipira do nome do blog não?

Assim que vi pela primeira vez porcos caipiras. Ou melhor, porcas. Caipira porque esse é um tipo de “suíno” bem próximo do javali sueco. Achei muito interessante o penteado punk delas.

Não deu pra pegar o topete delas…

O mais absurdo que eu também nunca tinha visto ao vivo terra que porco tinha fuçado. Agora que entendi porque o sueco diz que criança que demora pra dormir fica “fuçando” (böka runt i sängen). E que justo por causa disso tem gente que “empresta os porcos” para os vizinhos “limparem” a terra.

E, sabiam que amanhã lançam um foguete para a estação espacial com dois astronautas? Pela primeira vez não penso que astronauta é meio bobo das ideias… do jeito que o planeta está acho que mais gente goataria de dar no pé. E, falando de outra coisa nada a ver mas tudo a ver, a Noruega abriu as portas pra Dinamarca, que abriu as portas pra Noruega, Islândia e Alemanha; mas nenhuma das duas abriu as portas pra Suécia.

Porcos são muito inteligentes mas nunca foram mandados para o espaço. Sorte deles.

Diário Caipira-53

Voltei a trabalhar. Dá uma felicidade misturada com saco cheio. A gente fica longe do trabalho e absolutamente nada muda. Mas o melhor do meu trampo é que há duas outras gurias que falam português. É uma delícia poder falar abobrinha na nossa própria língua.

Diário Caipira-52

Essa semana estávamos falando de comida afetiva, todas aquelas que te remetem à uma sensação de segurança e amparo, amor. Normalmente estão ligadas à memórias da infância ou de momentos especiais com a família e/ou os amigos.

Eu tenho várias dessas. Tenho lembranças maravilhosas de coisas simples tipo macarrão a alho e óleo e café recém passado. Presunto e queijo eram marcas de quando a gente ia na vó. Vinho novo (suco de uva) da casa da nona. Nhoque de batatas. E, é claro, bolo de fubá.

Interessante como gente associa certas pessoas a determinada comida: minha irmã mais velha comia azeitona assistindo filme, minha irmã mais nova fazia a melhor maionese que já comi na vida e meu irmão era muito novo pra cozinhar qualquer coisa, mas sempre penso nele quando o assunto é “X” (entendedores entenderão).

Falei né que adorava espaguete ao alho e óleo? Mas um dia, eu aqui na Suécia, falando de comidas de mãe que eu sentia falta com uns colegas de trabalhi lá na empresa de limpeza: “putz, o espaguete ao alho e óleo que minha mãe fazia era incrível. Eu sempre ponho alho demais ou óleo demais… Mas o da minha mãe… lembro e chega dar água na boca”. Aí meu colega me olha e diz “minha mãe servia isso pra gente quando não tinha mais nada o que comer em casa… então a gente sabia, agora só tem macarrão, se não entrar dinheiro logo não vai ter mais nada”.

Foi tipo um soco na cara. Demorou muito tempo pra mim fazer espaguete de novo. E cozinhar espaguete me lembra aquele colega. Ainda hoje. Como é que pode comida marcar tanto a gente né?

Então quando meus filhos nasceram tentei envolver eles na preparação da comida pra gente criar essas memórias (que eu espero, sejam positivas) e que façam eles sentir um “nossa que saudade de quando a gente fazia isso ou aquilo”.

Aproveitando que estamos bastante tempo em casa decidi fazer bolo. Pensei na questão da comida afetiva e decretei: vai ser bolo de fubá. Estávamos quase prontos e já ia esquecendo o fermento quando achei chocolate granulado. Deu um quentinho no coração. Olhei pra eles e disse:

– Esse bolo de fubá vai ser um bolo formigueiro, querem ver?

O pedacinho que sobrou foi porque o bolo fez sucesso.

Diário Caipira-51

Eu sou daquelas que sonha e lembra dos sonhos. Alguns deles dariam bem um episódio de Black Mirror, outros estariam mais pra uma coisa Mary Poppins. Mas as crianças já acostumaram me ouvir falando sobre o que sonhei.

Hoje acordaram tagarelas. Aí vem o mais velho e diz: “mãe, sonhei que o mundo tinha mudado pra muito melhor. Não tinha mais vírus e nem nada assim e todo mundo podia fazer as coisas que fazia antes, sair, ver os amigos. Mas ninguém precisava trabalhar porque o dinheiro só aparecia assim nas casas das pessoas. E também a gente podia jogar vídeo game o quanto quisesse!”.

Acho que o mundo não será o mesmo depois da pandemia, seja lá quando esse depois aconteça. Há dias que eu tenho muita esperança de que esse novo amanhã seja mais justo e solidário. Eu tenho medo e estou curiosa também…

Medo porque sei que há enorme potencial na nossa civilização que não é utilizado para o bem comum. No final das contas, nem conseguimos concordar qual seria a melhor forma de democratizar o “bem comum” (sem falar que nem é possível concordar sobre o que “bem comum” seria exatamente…)

Por exemplo aqui em casa… para alguns seria jogar vídeo game sempre que se quisesse. Pra mim seria…

Diário Caipira-50

Temos amigos que moram no centro da cidade, próximo do parque de diversões – Liseberg. E qual não foi a nossa surpresa ao ver a foto do prédio em que eles moram estampando o jornal da cidade, com a denúncia de que policiais haviam encontrado em um dos apartamentos do prédio um bordel.

Parece que o dono do apê estava viajando e alugava o imóvel via Airbnb. Um cafetão alugou o apartamento durante o fim de semana… mas não contava com os vizinhos bisbilhoteiros que perceberam a grande movimentação e o entra e sai constante de homens estranhos no prédio.

Resultado: a polícia foi chamada e o “prefeito” da cidade vizinha foi pego literalmente com as calças arriadas.

Duas coisas: há pouco mais de uma semana a polícia de Estocolmo pegou um “famoso” saindo de um bordel. Paolo Roberto perdeu o emprego na TV, na rádio e até foi demitido da própria empresa. Além disso vai pegar cadeia… porque comprar sexo na Suécia é proibido.

E outra… acho engraçado como Gotemburgo é bem estilo cidade pequena. Praticamente meio milhão de habitantes, mas gente que se comporta como em qualquer vilazinha do Brasil.

Memórias de um Caracol-2

Ainda estou com o nariz entupido e tosse. Não podemos ir para nenhum camping já que gente doente deve ficar em casa mas, uma vez que temos uma casa sobre rodas, fomos nos isolar no mato.

Passamos a noite “encaracolados” ao lado de uma reserva. Haviam três lagos muito perto de onde estávamos. Apesar de estarem fazendo agradáveis 20°C ao sol o vento estava frio. Assim que foi uma maravilha ter um “tapa vento” ao lado do lago pra gente se esconder do vento e ficar de boas.

Como a conexão com a Internet estava ruim, não teve post ontem. Hoje até melhorou mas na verdade, da próxima vez vou desligar a internet.

Diário Caipira-48

Duas coisas nada a ver:

1. Hoje fez sol. Céu azul, quase sem vento, sensação maravilhosa de 20-22 graus… deu até pra suar. Botei os cobertores pra fora (graças a Deus nenhum vizinho tapado fez fogo) e eu fiquei lá, admirando roupas no varal. Tem certas coisas que a gente só aprende dar valor quando é assim, raro. Passei tantos anos estendendo roupa no varal sem nunca ter aproveitado esse cheiro, essa coisa que só vento e sol deixa no tecido. E é totalmente grátis.

2. Tô bem cansada de a Suécia ter essa estratégia para lidar com o Covid. Faz a gente se sentir assim os diferentões do mundo: não tem lockdown, ninguém usa máscara e a taxa de mortos por milhão de habitantes é uma das mais altas do mundo, se não a mais alta. A exceção do último ponto, as duas primeiras questões são compreensíveis. Racionalmente falando, há uma série de argumentos que defendem e até tornam aceitável. Mas cansa.

Acho que os protocolos da OMS são justamente pra tentar padronizar o máximo possível o enfrentamento à pandemia. Se ao menos a gente tivesse um ministro estilo Trump aí seria mais fácil explicar essa zona toda. Mas a verdade é que a Suécia sempre quis bancar a diferentona. Tipo, como durante a Segunda Guerra Mundial, quando o país se declarou “neutro”. Ficou em cima do muro, ajudou um pouco os alemães por baixo dos panos, ajudou judeus a fugirem; no melhor estilo servindo à Deus e ao diabo… exatamente como faz agora: não assume que tenha uma estratégia “larguemos os cidadãos às traças” mas também não tem como explicar a alta taxa de mortalidade da doença no país.

Há muitos casos em que a Suécia foi a diferentona e foi ótimo, fodástico: tipo quando o país foi o primeiro no mundo a tornar o uso de violência na educação de criação de crianças ilegal, o primeiro no mundo a criar licença para pais e mães longa; o país que elevou a segurança dos automóveis a outro patamar… Mas agora, sei lá, não poderíamos ser um pouco mais Maria vai com as outras?

Diário Caipira-47

Estava falando com os meus pais e minha mãe me perguntou se havia possibilidade de voar para o Brasil. Eu disse que não tinha certeza, algumas pessoas conseguem voo. E ela me pediu “vem pra cá”.

Sempre que a gente ficava doente minha mãe aparecia pra cuidar da gente. Eu estava gripada e final de semana peguei outra gripe. Tô aqui escrevendo com o nariz trancado.

Eu queria estar com a minha mãe agora mas definitivamente não queria estar no Brasil. Estava lendo as reportagens sobre a Moderna, empresa que acredita ter criado uma vacina. Dá uma tristeza perceber que uma grande empresa estadunidense está na frente dessa corrida porque eu acredito que a vacina que sair dali – se for eficaz realmente – será super cara. Ou seja, vai reacender a chama da esperança mas ainda não vai frear a pandemia.

Ao mesmo tempo a China diz ter desenvolvido um remédio capaz de combater o corona. Seria outra possibilidade maravilhosa. Um remédio e uma vacina juntos salvariam milhares de pessoas, principalmente no Brasil.

Espero que ambos sejam acessíveis a quem não pode pagar também.

Diário Caipira-46

É incrível como a pandemia joga na nossa cara a desigualdade do mundo: quem pode e quem não pode parar; gente que tem uma casa inteira só pra si mesmo pra se isolar e famílias que moram num quarto; gente que nem tem água pra lavar as mãos e governantes que lavam as mãos no melhor estilo Pilatos…